Em um dia de sol em Fortaleza, estava eu saindo de um hotel da Beira Mar acompanhado de uma amiga. Um dia aparentemente tranquilo. Após o almoço nos dirigíamos ao estacionamento e quase chegando ao carro fomos barrados por um veículo, que era operado por um ser impaciente o bastante para esperar que chegássemos ao nosso destino. Ao me dirigir para a saída do estacionamento, o ser e seu grupo familiar estavam caminhando lentamente na frente do meu veículo. Era o avesso da situação. Agiria eu de forma diferente? Decidi buzinar rapidamente para o grupo, a fim de que os mesmos saíssem do caminho destinado aos carros. Aí que a história fica interessante… O ser veio “fumegante” em direção ao meu veículo, abriu a minha porta e bateu na mesma, em uma convocatória para a luta. Eu não revidei, fiquei dentro do carro e disse que ele estava me agredindo. Saí dali o mais rápido possível. Voltando para casa, tentei processar tudo aquilo. Meu caros amigos, é certo que vivemos tempos obscuros no que se refere ao tecido social. Acredito que estamos vivendo o avesso do mundo, a parte na qual a costura social não aparece mais, suas inter-relações e significações preteridas. Rompemos facilmente com o laço social, trocando-o por um mundo politicamente correto apenas no plano da forma, mas esvaziado de todo sentido no campo do real. Trocando em miúdos, a fala atual se resume em: “não tenho tempo para ser gentil com os outros, mas é imprescindível que sejam gentis comigo em minhas particularidades, até quando eu quiser caminhar com a minha família em um espaço destinado a carros.” Jean-Pierre Lebrun, em seu livro A Perversão Comum, lança certa luz sobre estas angústias. O psicanalista belga aponta para uma perda de legitimidade dos pais em educar os filhos. As dificuldades para impor limites se acentuaram, causando grande apreensão nos pais quanto ao futuro de seus filhos. Existem consequências desse esvaziamento do lugar dos pais e da sociedade na função de circunscrever seus indivíduos no processo educativo e civilizatório. Lebrun aponta para uma delas ao admitir uma mutação do laço social na nossa modernidade, que submetida à lógica do mercado e do gozo pleno, vem introduzindo o desaparecimento do outro. A nova forma de se constituir socialmente advinda dessa mutação produz novos regimes de economia psíquica, trazendo consigo novas formas de subjetivação, produzindo neo-sujeitos. Estes privilegiam a recusa de reconhecimento do espaço do outro. Este outro está ausente, esvaziado, desativado e como consequência seu espaço e direitos inexistem. A perversão comum se manifesta em diversos níveis e cabe, quase sempre, uma intervenção, a fim de contê-la ou liberá-la para as próximas gerações. Por ora, podemos percebê-la em um estacionamento, em uma padaria ou em uma câmara de deputados.
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